CAPÍTULO 6 – A DOUTRINA ACERCA DO PECADO (Hamartiologia)


“Frequentemente eu tenho tido percepções muito profundas da minha própria pecaminosidade e vileza; e muitas vezes isto me faz chorar amargamente (...). Quando olho para o meu coração e vejo a minha iniquidade, ela se parece com um abismo infinitamente mais profundo que o inferno”. – Jonathan Edwards (1703 - 1758)

INTRODUÇÃO

O conceito bíblico de pecado e todas as verdades cristãs acerca desse tema não têm recebido a merecida atenção nos tempos atuais, nem por parte do mundo (obviamente), nem tampouco da igreja em geral (lamentavelmente).

Pouco se fala sobre o maior problema da humanidade, o que é lastimável, posto que o pecado está na raiz de todas as desgraças que se abatem sobre os indivíduos, as famílias e a sociedade como um todo.

As razões dessa negligência são, basicamente, duas: o secularismo que domina a sociedade e o utilitarismo que invade as igrejas. Movidos pelo secularismo, os homens tendem a explicar toda má conduta com base em noções científicas, como doenças ou distúrbios psíquicos ou sociais, rejeitando qualquer ideia de pecado. Impulsionadas pelo utilitarismo, as igrejas, por sua vez, tendem a evitar qualquer assunto que retarde ou impeça o seu crescimento, afastando as pessoas que as visitam. Daí o silêncio acerca de temas como o pecado e todas as suas consequências tanto aqui como na vida futura.

A Bíblia, contrariando isso tudo, fala bastante sobre o pecado, tratando do assunto com notável clareza. O traço que tanto caracteriza a raça humana não deixa de receber ampla atenção na Palavra de Deus. É, pois, esse aspecto da doutrina cristã, tão compreensivelmente mencionado nas páginas das Escrituras, que é exposto a seguir.

O SIGNIFICADO DE “PECADO”

A Bíblia diz que “as vossas iniquidades fazem separação entre vós e o vosso Deus; e os vossos pecados encobrem o seu rosto de vós para que vos não ouça” (Is 59.2). Isso mostra que, basicamente, o pecado é algo que provoca o rompimento das relações do homem com Deus.

Falando, porém, de modo mais específico, o pecado pode ser definido como:

1. Omissão do dever (Tg 4.17).
2. Atitude errada para com Deus (Nm 21.7; Mc 3.29; 1Co 10.31).
3. Transgressão de lei (1Jo 3.4).
4. Ação errada em relação aos homens (Pv 14.21; Tg 2.9).
5. Não crer em Jesus (Jo 16.8-9).
6. A tendência natural para o erro (Rm 7.15-17).

A palavra grega “Hamartia” (Pecado) vem de um verbo que significa “errar o alvo”.

ATENÇÃO!
Muitas pessoas dizem que não há diferença de gravidade entre um pecado e outro (“Não existe pecadinho nem pecadão”). Porém, vários textos bíblicos indicam que essa noção é incorreta, mostrando que há pecados mais e menos graves, o que dá ensejo à aplicação de castigos com diferentes graus de severidade (Lm 1.8; Ez 8.13-15; Am 5.12; Mt 11.20-24; 12.31; 23.14; Jo 19.11; Hb 10.28-29; 1Jo 5.16-17). Seja como for, o salário do pecado é sempre a morte (Rm 6.23), sendo certo que o preço pago para a obtenção do perdão, mesmo da menor das transgressões, foi o sangue de Cristo (1Co 15.3).

OS TRÊS ASPECTOS DO PECADO

AÇÃO PECAMINOSA: Refere-se às práticas que desagradam a Deus. Todo homem as comete, tanto o salvo como o não salvo (Sl 51.4; 1Jo 1.8-10; 3.4). Dentro desse aspecto estão também as omissões que o Senhor reprova (Tg 4.17).

NATUREZA PECAMINOSA: É a tendência natural que o homem tem para o mal desde o seu nascimento (Sl 51.5; Rm 7.15-25). Essa natureza caída, ao que tudo indica, é transmitida de pai para filho (Gn 5.3; Sl 51.5). Por ser uma realidade ligada à depravação total do ser humano (Rm 3.10-12), a natureza pecaminosa compõe o conceito de “pecado original”.

CULPA: Não é propriamente uma expressão do pecado, mas sim o impacto jurídico que a transgressão de Adão teve sobre toda a humanidade, tornando-a condenável (Rm 5.15-19; 1Co 15.22). Esse impacto sobrevém ao homem por imputação, uma vez que Adão era o representante de cada ser humano (concepção federalista).

Alguns teólogos entendem que a humanidade não teve em Adão um representante, mas sim que ela estava contida seminalmente nele (como Levi estava em Abraão, cf. Hb 7.9-10), sendo participante do pecado cometido no Éden (Rm 5.12). Segundo essa concepção, o homem não é condenado por ser-lhe imputada a culpa de Adão, mas sim por sua própria culpa.

Seja qual for a posição adotada, o fato é que todos os homens nascem sob a condenação decorrente do primeiro pecado (Rm 3.9-10). Quando, porém, alguém crê em Cristo, essa condenação é anulada. A isso é dado o nome de justificação (Rm 3.23-24; 5.1; 8.1).

Deve ficar claro que ao morrer na cruz, Cristo não anulou a possibilidade de o crente cometer transgressões. Tampouco ele remove a natureza pecaminosa da pessoa que se converte, ainda que a enfraqueça pela ação do Espírito Santo (Rm 8.1-4; Gl 5.16,24). A verdade é que, infelizmente, o cristão ainda não está livre dos dois aspectos do pecado aqui denominados como “ação pecaminosa” e “natureza pecaminosa”. Por isso, o crente aguarda ansiosamente o dia em que seu livramento será total (Rm 7.24-25; 8.23; 2Pe 3.13; 1Jo 3.2-3).

O único aspecto do pecado que Cristo anulou totalmente na cruz foi a culpa. Sua morte teve um efeito jurídico. Ele sofreu em lugar do pecador o castigo da condenação que lhe era devido (Is 53.5; 1Pe 2.24; 3.18). Por isso, o crente desfruta da posição de justo diante de Deus sem ter que temer qualquer julgamento ou sentença (Rm 5.1; 8.1). Ao contrário do que muitos dizem, essa doutrina jamais deve encorajar o pecado (Rm 6.1-2).

O ALCANCE DO PECADO

Nada no universo que Deus criou está fora do alcance do pecado. Tanto a realidade material como a espiritual foram afetadas pela rebelião de criaturas racionais contra o seu Criador. Assim, o pecado atingiu:

Os céus: O pecado entrou no universo por causa da rebelião de Satanás que, segundo a tradição hermenêutica (questionada por alguns exegetas), é descrita em Isaías 14.12-15 e Ezequiel 28.12-15. Isso afetou os céus de modo a infestar as regiões celestiais de anjos caídos (Jó 1.6; Ap 12.7) que também fazem guerra contra o crente (Ef 6.11-12).

A terra: Com a queda do homem, o pecado afetou a terra, sujeitando a natureza ao sofrimento e à inutilidade (Rm 8.18-23). Tanto o reino vegetal (Gn 3.17-18) como o animal (Gn 9.1-3) foram prejudicados, além de toda a humanidade (Ec 7.20; Rm 3.10-12,19,23; 5.12).

A ORIGEM DO PECADO DO HOMEM

O pecado, ao se perfazer na história humana, passou pelas seguintes etapas:

Prova: Refere-se ao período durante o qual o homem foi sujeito ao teste que consistia na obediência a uma ordem específica de Deus (Gn 2.15-17). Não se sabe quanto tempo esse período durou.

Tentação: Refere-se à atividade maliciosa e persuasiva que Satanás, sob a forma de serpente, exerceu sobre Eva, bem como à ação da mulher em oferecer o fruto ao seu marido (Gn 3.1-6; 1Tm 2.13-14).

Queda: Refere-se ao fato de o homem ter cedido à tentação, quebrando a ordem de Deus. A desobediência do homem foi voluntária. Como ser pessoal, dotado de real livre-arbítrio, Adão pôde exercer plenamente sua capacidade de escolha quando decidiu desobedecer ao Criador (Gn 3.6; Rm 5.12-19; 1Tm 2.14).

OS RESULTADOS DA QUEDA PARA A HUMANIDADE

Toda a raça humana estava, de algum modo, ligada a Adão quando ele pecou. Por isso, os resultados de sua desobediência sobrevieram a todos os homens (Rm 5.12-19).

As consequências do pecado de Adão para a raça humana foram as seguintes:

• A terra foi amaldiçoada, exigindo trabalho árduo para produzir alimento (Gn 3.17-19).
• A mulher passou a ter dores no parto e conflitos no campo da sujeição ao marido (Gn 3.16).
• Todos os homens são pecadores e estão sob condenação (Rm 5.16,18).
• A morte, física e espiritual, entrou no mundo (Gn 2.17; 3.19; Rm 5.12,15,17; Ef 2.1).
• A penalidade da morte eterna passou a existir (Rm 6.23; Jd 13; Ap 20.14-15).

Os efeitos da queda de Adão podem também ser observados a partir dos rompimentos que causou, conforme ilustrado a seguir:

1. O rompimento da harmonia do homem com Deus (Gn 3.8).
2. O rompimento da harmonia do homem consigo mesmo (Gn 3.10,16a,19c).
3. O rompimento da harmonia do homem com seu semelhante (Gn 3.12,16b).
4. O rompimento da harmonia do homem com a natureza (Gn 3.17-19; 9.2).
5. O rompimento da harmonia na natureza (Rm 8.19-22).

A DEPRAVAÇÃO TOTAL

O pecado afetou o ser humano em sua totalidade. A esse efeito devastador do pecado, dá-se o nome de “depravação total”.

Cabem aqui algumas ressalvas. Quando se diz que o homem é totalmente depravado, isso não significa que cada pessoa do mundo pratica todas as formas de abominação imagináveis. Também não significa que os seres humanos são incapazes de realizar qualquer ato de bondade ou virtude.

“Nunca admirei muito a coragem de um domador de leões. Pelo menos dentro da jaula ele está a salvo das pessoas”. – George Bernard Shaw

A doutrina da depravação total afirma, isto sim, que as faculdades do ser humano foram todas afetadas pelo pecado, não que sua conduta é sempre marcada por todo tipo de ações más.

O quadro a seguir mostra o alcance da destruição do pecado no ser humano, fornecendo algumas bases para a doutrina da depravação total.

Área afetada: MENTE.
Efeito: O interior do homem é uma fonte inesgotável de palavras e ações más.
Base bíblica: Gn 6.5; Sl 58.3; Mt 15.18-19.

Área afetada: INTELECTO.
Efeito: O homem não consegue entender as realidades espirituais.
Base bíblica: Rm 3.11; 1Co 1.18; 2.14; 2Co 3.14-15; 4.3-4.
Efeito: O homem tem sua capacidade de julgar entre o bem e o mal limitada.
Base bíblica: Is 5.20; Rm 1.32; Ef  4.17-19; 1Pe 4.4.
Efeito: O homem tende a acolher as mentiras e fábulas mais grosseiras.
Base bíblica: Sl 14.1; Mt 24.5,11; 2Ts 2.9-11; 2Tm 4.3-4.

Área afetada: EMOÇÕES.
Efeito: O ser humano se alegra em práticas detestáveis.
Base bíblica: Jó 15.16; Is 66.3; 2Ts 2.12; 2Pe 2.13.
Efeito: O ser humano não nutre afeto algum pela Palavra de Deus.
Base bíblica: Jr 6.10.
Efeito: O ser humano ama as trevas, mas odeia Cristo e seus discípulos.
Base bíblica: Jo 3.19; 15.18-19; 1Jo 3.13.

Área afetada: VONTADE.
Efeito: O homem não consegue realizar suas boas decisões.
Base bíblica: Jr 13.23; Rm 7.15-23.
Efeito: O homem não consegue, por si só, optar por ir a Cristo.
Base bíblica: Jo 1.13; 6.44,65; Rm 3.11.
Efeito: O homem deseja fazer a vontade da carne.
Base bíblica: Rm 8.8; Ef 2.1-3.

O PECADO E O LIVRE-ARBÍTRIO

Livre arbítrio não é, como muitos pensam, a capacidade natural que as pessoas têm de fazer as escolhas gerais do dia-a-dia. Isso, na verdade, é mera expressão do exercício comum da vontade e, ainda que sofra as influências do pecado, não foi erradicada com a queda do homem no Éden.

Observe-se a seguir uma possível definição de livre-arbítrio:

Livre arbítrio é o poder de julgar com total isenção entre o bem e o mal, decidir qual alternativa acolher e realizar essa decisão sem qualquer fator que a impeça ou restrinja.

O homem desfrutou dessa faculdade antes da queda. Ao ser totalmente corrompido pelo pecado, porém, isso se perdeu. Mesmo no homem convertido o livre-arbítrio não foi plenamente restaurado. De fato, todo crente descobre, com tristeza, que o querer o bem está nele, não, porém, o efetuá-lo (Rm 7.18-19) e que existe em sua carne uma lei que limita seu poder de realizar o que quer (Rm 7.21).

A prova cabal do fim do livre-arbítrio não está, contudo, na área das ações, posto que, eventualmente, os homens fazem “o bem que querem”. A prova cabal do fim do livre-arbítrio está no campo das inclinações. Com efeito, todo indivíduo que decide não desejar algo ou não inclinar-se para determinada paixão percebe de pronto que essa decisão não surte efeito algum, sendo necessária uma longa batalha para que o mau desejo ou a inclinação perversa sejam (talvez!) neutralizados.

Por ter perdido o livre-arbítrio, o homem corrompido só pode decidir acolher o evangelho e crer efetivamente em Cristo se Deus agir poderosamente em seu coração (At 16.14). A partir de si mesmo, essa decisão é impossível (Jó 14.4).

OBSERVAÇÃO: O responsável por esta exposição do livro em PDF discorda veementemente da posição que diz que o homem teve livre-arbítrio em algum momento da história, incluindo no Jardim do Éden, antes de sua queda. As Escrituras nos mostram claramente que Deus é o Autor sem par de todas as coisas, tanto do bem como do mal. Por isso, não devemos confundir a ordem dos decretos de Deus com a ordem de sua aplicação histórica. Com efeito, aliás, no que concerne à aplicação histórica, Deus realmente espera a queda do homem para depois aplicar sua salvação. Mas aqui estamos lidando com metafísica, e, neste caso, a cadeia dos decretos de Deus pode ser esboçada da seguinte maneira:

(1) Glória de Deus (o fim último de todos os movimentos); (2) eleição de alguns indivíduos para a salvação e de alguns indivíduos para a condenação; (3) provisão de uma salvação para os eleitos; (4) aplicação dos benefícios redentores de Cristo aos eleitos; (5) queda do homem; e (6) criação.

Por isso diz a Escritura: Jesus é a "Pedra de tropeço e Rocha de escândalo para aqueles que tropeçam na Palavra, sendo desobedientes; para o que também foram DESTINADOS. Mas vós (os salvos) sois a geração ELEITA, o sacerdócio real, a nação santa, o povo adquirido, para que anuncieis as virtudes daquele que vos chamou das trevas para a Sua maravilhosa luz" (1 Pedro 2.8-9).

"O Senhor fez todas as coisas para atender aos Seus próprios desígnios, até o ímpio para o dia do mal (...). Os dados são lançados na mesa, mas do Senhor procede toda a determinação" (Provérbios 16.4,33). O homem nunca teve livre arbítrio, nem mesmo antes de sua queda. – JP Padilha

O CRENTE E O PECADO

Cristo proveu o sacrifício necessário para a satisfação da justiça de Deus (1Jo 2.2), de forma que, graças à sua obra na cruz, toda transgressão pode ser perdoada. Assim, o crente deve confessar seus pecados a Deus sabendo que ele é fiel e justo para purificá-lo de toda injustiça (1Jo 1.9). Essa confissão deve ser expressão de verdadeiro arrependimento (Tg 4.8-9).

No tocante à natureza pecaminosa, o crente deve, pelo poder do Espírito que nele habita, enfraquecê-la, a fim de não andar sob os ditames de suas paixões carnais (Rm 6.12-13; 8.13; Gl 5.16-26; Ef 4.17-24; Cl 3.5). Ele deve fazer isso sabendo que foi revestido de uma nova natureza (Rm 8.1-5, 9; 2Co 5.17; Cl 3.9-10) que o capacita a não viver como escravo de suas más inclinações.

CUIDADO! VENENO!

Humanismo otimista: Rejeita qualquer noção de pecado ou de depravação do ser humano. Parte do pressuposto de que os desvios de comportamento das pessoas são devidos a influências externas tais como a educação recebida no lar, o ambiente social, as experiências de frustração ou sofrimento e as pressões culturais e/ou religiosas. Os indivíduos são dotados, portanto, de bondade intrínseca, a qual pode aflorar caso os fatores restritivos externos sejam afastados. Esses pressupostos são acolhidos por algumas vertentes da psicologia e da sociologia seculares.

“Eu sei que em mim, isto é, na minha carne, não habita bem algum”. – Paulo de Tarso (Romanos 7.18)

Evolucionismo ateísta: Em suas expressões mais radicais, ensina que o homem está evoluindo não só na esfera biológica, mas também moral. Isso, porém, não significa que o ser humano está crescendo no cultivo de boas virtudes, mas sim que, em seu amadurecimento cultural, caminha no rumo da total liberdade em relação a qualquer padrão ético que lhe seja imposto. Uma vez que não existe Deus, o pecado e os conceitos de bem e mal são somente fábulas. Por isso, no auge de sua evolução “espiritual”, o homem se verá livre de qualquer consciência que lhe imponha uma conduta considerada louvável à luz dos velhos ensinos cristãos.


Continua em: 
CAPÍTULO 7 – A DOUTRINA ACERCA DA SALVAÇÃO (Soteriologia)

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PEQUENO MANUAL DE DOUTRINAS BÁSICAS | Marcos Granconato

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