CAPÍTULO 5
DIAGNÓSTICO NÃO CURA
“De forma especial, não
julgue os filhos e filhas da aflição. Não permita incriminações mesquinhas
acerca dos aflitos, pobres e desanimados. Não se apresse em dizer que eles
devem ser mais valentes e exibir uma fé maior. Não pergunte ‘por que estão tão
exasperados e absurdamente temerosos?”. Não... eu lhe imploro, lembre-se de que
você não entende o seu semelhante.”
Algumas situações nunca
superamos. Nós as atravessamos, as atropelamos, mas
nunca as superamos.
Vinte e cinco anos após a brincadeira fatal, quando alguém gritou “fogo!” e
muitos morreram, Charles estava prestes a se dirigir a uma grande plateia
durante uma série de reuniões da União Batista. Agora ele estava mais velho, um
homem de meia-idade, um pastor experiente e conhecido. Todos os assentos
estavam ocupados e centenas ainda procuravam entrar. Charles caminhou sobre a
plataforma e, “reclinando a cabeça sobre a mão”, se viu “completamente
desorientado”. Por quê?
A circunstância o fez lembrar, de uma forma tão vivida, a cena terrível no
Surrey Music Hall, que ele se sentiu incapaz de pregar. Contudo, ele pregou. Na
verdade, pregou bem, embora não houvesse conseguido se recuperar completamente
da inquietação em seu sistema nervoso.
Charles viveu aquilo que hoje talvez chamaríamos de um “flashback”. Um momento na história, perfeitamente inofensivo, que
dispara memórias de um momento anterior repleto de danos. Este se parece com
aquele e dispara uma resposta traumática em nossos corpos e mentes. Até a
habilidade graciosa de pregar bem não se “recuperou completamente da
inquietação em seu sistema nervoso”. Vinte e cinco anos haviam se passado e
Charles ainda sofria, no presente, o que lhe traumatizara no passado. Vinte e
cinco anos...
Diagnosticar nossa depressão circunstancial, biológica e espiritual oferece
ajuda, mas não põe fim em nosso desafio.
SUSPEIÇÕES MESQUINHAS AINDA PERSISTEM
Por causa da lentidão
ou ausência de cura, os que sofrem de depressão deverão suportar diariamente
vozes de condenação. Afinal de contas, “você já não deveria ter superado isso a
essa altura?”.
A condenação provém daquilo que Charles chama de “suspeições mesquinhas”, e que
muitos nutrem em relação àqueles que estão em depressão. Aos olhos de muitas
pessoas, incluindo cristãos, depressão significa covardia, falta de fé, ou
simplesmente falta de atitude. Tais pessoas dizem a Deus em oração, e
pessoalmente a seus amigos, que o sofredor de depressão provavelmente está
fingindo, é fraco ou não é espiritual. Em nossa frente, eles nos instruem a
aumentar nossa coragem, nos envergonham ao nos fazer expor nossas mentiras ou
citam a Bíblia para chacoalhar a
nossa fé. Tentam argumentar conosco por meio da “lógica” para demonstrar e
provar quão absurdos são nossos medos.
Ao escolherem essa postura, provam que não compreendem seu semelhante, homem ou
mulher. Somente em momentos exasperados alguns deles finalmente admitem isso.
Com toda a força, ou mesmo no sussurro de suas próprias lágrimas, gritam: “eu
não compreendo você!”; “isto simplesmente não faz sentido algum!”.
A falta de controle leva tais pessoas a recorrerem de forma apressada a essas
ferramentas de incriminação, julgamento, condenação ou exortação espiritual mal
orientada, na tentativa de reparar a situação. Todavia, essas ferramentas
simplesmente não funcionam com esse tipo de dor. Em vez disso, essas pessoas
terão de aprender a usar uma ferramenta diferente. Caso contrário, apenas
continuarão chutando o forno quebrado, esperando, em vão, suscitar o seu calor.
Um pé dolorido e um amigo amassado são tudo o que tal BIRRA produzirá como
resultado.
O que, então, precisamos reparar em nosso entendimento? A história de Charles
pode ajudar a nossa própria.
A DEPRESSÃO É UMA ESPÉCIE DE ARTRITE
MENTAL
Conforme Charles pregou
a respeito da depressão, muitas pessoas atribuladas começaram a lhe escrever.
Ele se sentiu como “um médico que repentinamente lhe tivera confiada uma nova
prática”. Compartilhava o que aprendia a partir da experiência como cuidador e
de sua própria experiência com a depressão.
De acordo com Charles, ditados desgastados e soluções rápidas não funcionam. A
maior parte dos sofredores não pode simplesmente “ser dispensada somente com
uma palavra ou uma dose de remédio, mas requer um tempo prolongado em que
compartilharão suas lamúrias e no qual receberão conforto”. Um “trabalho
superficialmente fácil e uma palavra precipitada” não resolverão. Não importa
quanta compaixão ofereçamos, isso não ajuda. Em resumo, a depressão nos lembra
que “há um limite para o poder humano (...) somente Deus pode remover o ferro
quando ele penetra nossa alma”.
Também temos de reconhecer nossas próprias vulnerabilidades enquanto cuidadores
e sofredores. Falando de uma ocasião em que se deparou em um dia com “vários
casos lúgubres de depressão”, Charles começou a escorrer pelo ralo mental e
emocionalmente. “O que devemos fazer nesses casos?”, indagou ele. “Fugir desses
momentos? Em hipótese alguma”. Mas a graça deve assegurar nossa esperança, de
outra forma, nós também “em breve vamos sentir que o Sol se foi”. Ambos, o
sofredor e aquele que está tentando ajudar podem ficar sobrecarregados com
sentimentos de todo infrutíferos e por isso até mesmo sofrer de culpa ou vergonha.
Talvez nada na vida nos lembre mais de que não somos Deus e que esta terra não
é o paraíso, do que uma angústia indescritível, que às vezes desafia a própria
causalidade e que não tem nenhuma cura imediata ou absoluta. Não há momento
mais delicado, ou assento mais difícil para se sentar, do que aquele em que
aguardamos o médico, quando este, depois de todos os exames solicitados sobre
nossa carne fadigada e picada por agulhas, em revés nos admite: “simplesmente
não sabemos”. Quanto maior é nosso infortúnio, então, quando a dor nos alveja
de posições imprevistas dentro dos escombros bombardeados de nossa mente?
Com esse tipo de realismo, Charles colabora com “os mais sábios” auxiliadores,
que não deixam de reconhecer “a dura verdade de que depressões graves não
desaparecem da noite para o dia”. A depressão é melhor entendida enquanto “um
tipo de artrite mental”. Diferente de outras aflições, ela nos infecta com uma
paciência maligna. Frequentemente, nós que a sofremos não temos um resgate
pronto ou imediato, próximo à costa de nossa ilha psíquica. Antes, devemos
aprender as habilidades da graça necessárias para lá sobreviver e, assim,
ajustar nossas vidas para o que significa prosperar dentro de suas condições.
Não obstante, por que o diagnóstico não resolve essa questão? Ele ajuda àqueles
que sofrem a conhecerem o que os está assombrando. Esse tipo de designação pode
aliviá-los. Isso também ajuda os cuidadores e companheiros a compreenderem que
algo real e árduo acontece ao seu amigo. Mas por que com tanta frequência sua
designação não transcende para a cura? Talvez uma analogia possa nos ajudar a
pensar. Um esposo e uma esposa podem designar sua necessidade de amor, porém
todos nós sabemos que designá-la não resolve, apenas rotula a sua carência de
tal experiência. Designar a depressão é a mesma coisa. Rotula-se, mas não se
resolve. Por que?
CAUSAS DESCONHECIDAS
E PALAVRAS SIMPLISTAS
Primeiro de tudo, uma
cura não vem facilmente, pois, por conta de todos os nossos diagnósticos,
amiúde a verdadeira causa permanece oculta. “Há um tipo de escuridão mental”,
observa Charles, “em que você fica perturbado, perplexo, preocupado e
incomodado – e talvez não sobre qualquer coisa tangível”.
Assim como o Rei Davi clamou para si mesmo: “Por que estás abatida, ó minha
alma? Por que te perturbas dentro de mim?”, da mesma forma nós também arguimos
conosco tentando descobrir a razão pela qual vemos e imaginamos notícias
desagradáveis quando nenhuma delas de fato existe. “Você dificilmente pode
dizer por que está tão deprimido”, diz ele. “Se pudesse dar uma razão para o
seu desânimo, mais facilmente poderia superá-la”.
Em segundo lugar, a incapacidade de encontrar uma linguagem adequada também não
ajuda. Em seu livro Perto das Trevas,
William Styron observa que uma “aflição (muito) antiga” é frequentemente
“indescritível”. O sofredor não consegue encontrar uma linguagem adequada e,
congruentemente, o aspirante a auxiliador simplesmente não tem a capacidade de
“imaginar uma forma de tormento tão alheia à experiência do dia a dia”.
Explicações nesse caso são como segurar um pequeno fósforo aceso, à noite,
dentro de um sistema de cavernas subterrâneas. Quanto menor a luz, maior é a
escuridão.
Em suma, nossas palavras têm limites. Diagnosticar o câncer nos permite usar a palavra
“câncer” e relacioná-la em conformidade com as situações. No entanto, nomear
algo não elimina ter de suportá-lo diariamente, nem obriga nossos amigos a
terem que se relacionar conosco enquanto o fazemos.
Qualquer
um que já tenha realmente estado
doente sabe que o nível de tolerância para a
doença é baixo. Uma vez que as rosas de
melhoras começam a murchar, tudo muda.
Compaixão e cuidado se tornam fardos e a
vulnerabilidade se transforma em fraqueza. Se a
doença é algo tão nebuloso quanto a depressão,
as pessoas começam a tratá-la como uma
falha de caráter: Você é preguiçoso, incapaz,
egoísta, autocentrado.
“Seus
amigos lhe dizem que você é nervoso, sem dúvida você é, mas isso não muda o
caso”, diz Charles.
Em síntese, tente se lembrar disso: palavras de diagnóstico como “depressão”
são bilhetes ou convites, não destinos. Uma vez que as tenha falado, é como se
iniciasse a sua viagem com a pessoa, e não que a terminasse.
NÃO HÁ “UM TAMANHO ÚNICO”
NOS DIAGNÓSTICOS
Mas por quê? Quando
usamos palavras que descrevem a depressão como um destino em vez de um convite,
ficamos propensos a “guarnecer vários sofredores com um rótulo que esconde mais
do que revela”. Começamos a tratar os sofredores genericamente, ao invés de
trata-los como de fato o são em sua individualidade.
Assim como as miríade de pessoas com os nomes Roberto ou Júlia diferem
imensamente na personalidade, embora compartilhem os mesmos nomes, da mesma
forma cada pessoa que compartilha do mesmo diagnóstico de “depressão” difere no
seu tipo específico. Como um floco de neve, embora existam texturas e padrões
semelhantes para identificação, não há duas depressões totalmente iguais. “Cada
caso é tão diferente quanto o sofrimento de cada pessoa”. O que significa que
“a panaceia para uma pessoa é uma armadilha para outra”.
Se os que sofrem de depressão nos encontram vendo-os como uma categoria, não
acreditam que os vemos por completo. Mas você não se importa no início. Em um
primeiro momento, a designação de categorias dá uma esperança romântica. Eles
estão frequentemente desesperados por qualquer tipo de alívio, mesmo que
ilusório. Porém logo descobrem que a designação não cura. Algo mais profundo
deve ocorrer. Sofredores veteranos não confiam mais em uma mera categoria
nosológica como auxiliadora.
De acordo com o Dr. Richard Winter, “sem uma esperança realista, tudo está
perdido”. A esperança realista é “a porta de saída das trevas da depressão e do
desespero”. Se a nossa esperança está desgastada, aqueles que já sofreram o
tempo suficiente para se decepcionar com todas as respostas que as pessoas têm
oferecido ao longo do caminho, vão compreender o vazio de esperança que
oferecemos a eles.
O QUE NÓS APRENDEMOS?
1. Para o sofredor, as causas e curas podem não ser encontradas em um
determinado momento. Charles diz claramente: “Você pode estar cercado com
todas as comodidades da vida, e ainda assim estar na miséria mais sombria que a
morte se o espírito estiver deprimido. Você pode não ter nenhuma causa externa
para a aflição, contudo se a mente estiver deprimida, o sol mais brilhante não
vai aliviar sua tristeza. Neste momento, você pode estar oprimido por
preocupações, assombrado pelo pavor e assustado com coisas que o inquietam”.
2. Para os auxiliadores, a nossa
capacidade de ajudar é real, mas também limitada. Às vezes, tentamos focar
em uma preocupação somente para descobrir que ela mudou e outra tomou o seu
lugar. “Você se sente como Hércules cortando as cabeças de Hidra, que não
cessam de se regenerar a cada golpe. Em desespero você desiste de sua tarefa
(...) quanto mais você tenta se confortar”, pior as coisas ficam.
Consequentemente, devemos fazer uma pausa e com humildade admitir nossa posição
de carentes. Não somos oniscientes. Não podemos saber tudo. Como o apóstolo
Paulo nos recorda, somos como aqueles que olham para Deus, uns para os outros e
para o mundo como que através de um espelho turvo. Sempre vemos, mas apenas
parcial e vagamente (1Co 13.12).
Sobre esse ponto, Charles nos lembra a estabelecer o seguinte objetivo: sempre
dar graças a Deus por aquilo que vemos claramente, não importa quão pequeno
seja, e assim “reprimir nossa presunção”. Pois “conhecemos apenas em parte”,
diz ele. “Amados, os objetivos que focamos estão distantes, e somos míopes”.
Então, uma esperança realista nos ensina a reconhecer, desde o início, que
nossa visão também é limitada para tentar explicar a depressão. Não há lugar
para o orgulho aqui. A graça de uma história maior, ou de uma visão mais ampla
do que este momento específico de escuridão, deve nos orientar.
O BORDÃO DE SUA GRAÇA
Se a um homem coxo é oferecido um bordão, ele
não precisa saber quem lhe deu e nem por que sua perna precisa de ajuda, antes
precisa fazer uso da força do bordão e dar um passeio no jardim florido.
Muitos companheiros sofredores tiveram uma boa vida sem nunca saberem
exatamente por que a escuridão os assombrou tanto. Quando descobrimos as razões
dos porquês, damos graças. Todavia, quando as razões permanecem escondidas,
aprendemos a dar graças também, e mancar inclinados sobre o bordão. De qualquer
maneira, a graça nos vê nitidamente além da nossa visão. Ela pode suportar bem
o peso que não conseguimos.
Então, como podemos falar do Bordão da Graça de Deus no meio de nossa
incapacidade excruciante de encontrar curas, causas ou até mesmo consolo? Esse
tipo de teologia barata não aprofunda ainda mais as ideias desgastadas e
prejudiciais de uma esperança irrealista?
– Zack Eswine / A Depressão de Spurgeon: Esperança realista em meio
à angústia – PARTE 2 – Cap. 5 – Pág. 81-92
SUMÁRIO DA SÉRIE "A DEPRESSÃO DE SPURGEON: Esperança Realista em meio à Angústia"
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