CAPÍTULO 6 - Uma Linguagem para as nossas Aflições

“Aquele que agora expõe essas palavras, dentro de si mesmo, sabe mais a respeito dos abismos interiores do que ousaria falar ou se importar (...) Terrores estão voltados contra mim, eles perseguem a minha alma como o vento”.

O notável poema de Jane Kenyon, Having it out with Melancholy, coloca dois problemas relacionados a “Deus” e associados à depressão e às nossas tentativas de cuidados. Primeiro, a depressão arruína nossas “boas maneiras com Deus”, pois nos ensina “a viver sem gratidão”, nos tentando a responder ao propósito de nossa existência como “simplesmente uma espera pela morte”, já que “os prazeres terrenos são tão supervalorizados”. Segundo, a depressão tenta nossos amigos a oferecer o seguinte conselho: “você não estaria tão deprimido se você realmente acreditasse em Deus”.

A fim de aprender com as verdades dolorosas apontadas por Kenyon, precisamos primeiro de um reconhecimento gracioso das boas maneiras de Deus para com o depressivo. Assim, neste capítulo, vamos explorar a linguagem da graça que Deus dá ao sofredor. Logo depois, no capítulo seguinte, iremos explorar o tipo de ajuda que em nome de Deus faz mais mal do que bem. E posteriormente, no capítulo oito, examinaremos a verdadeira ajuda para o sofredor agraciado.

Vamos começar, portanto, com a linguagem que Deus utiliza para com o que sofre aflições. Com isso, percebemos suas maneiras amáveis para conosco mesmo quando as nossas para com ele parecem naufragadas e perdidas no mar.

 

A BÍBLIA USA METÁFORAS
PARA AUXILIAR OS AFLITOS

Os sofredores de depressão se apoiam em metáforas. Andrew Salomon explica o por quê. Uma vez que “a depressão é uma condição quase inimaginável para qualquer um que não a tenha conhecido”, seu diagnóstico “depende de metáforas”.

Andrew Salomon destaca algumas metáforas comumente usadas para a depressão, como “caminhar à beira de um precipício” ou “cair em um abismo”. Willian Styron se debruçou igualmente sobre as imagens de afogamento e sufocamento para tentar fazer a descrição de sua aflição. Que metáforas você faria?

Charles não age de maneira diferente. Segundo ele, nossas depressões de tipos variados nos fazem como aqueles que “atravessam o imenso deserto”. Suportamos “invernos”. Somos “moídos como um cacho, pisados no lagar de vinho e entramos no “dia de neblina” em meio à tempestade, como aqueles “apanhados por um furacão”. “As águas rolam continuamente onda após onda” sobre nós. Somos como aqueles “assombrados pelo pavor” num “calabouço escuro” ou “sentados no canto de uma chaminé sob um acúmulo (...) de dores, fraquezas e aflições”. Sentamo-nos “nas trevas, como aquele que está gelado e entorpecido e sobre quem a morte está rastejando lentamente”. Somos como “guerreiros ofegantes” e “pobres soldados enfraquecidos” clamando pelo alívio dessa “longa batalha de aflição”.

O historiador Stanley W. Jackson escreveu sobre esse uso necessário de metáforas em seu livro Melancolia e Depressão: Dos Tempos Hipocráticos aos Tempos Modernos (Melancholia & Depression: From Hippocratic Times to Modern Times). Jackson não encontrou “nenhuma afirmação literal”, nenhum termo de diagnóstico que fosse capaz de descrever adequadamente a diversidade de nossa tristeza juntamente com seus variados ataques de melancolia e humor. O que ele encontrou em vez disso foram duas figuras de linguagem recorrentes: “estar em um estado de escuridão e estar oprimido”.

Precedendo-o, Charles encontrou tais metáforas e comparações na própria Bíblia. Em suas páginas, os fiéis descrevem sua condição interior em termos de poços e pântanos lamacentos, sombras profundas e cemitérios, inundações que nos engolem completamente. O salmista se volta para esse tipo de linguagem:

“Pois a minha alma está farta de males, (...)
sou como um homem sem força,
atirado entre os mortos;
como os feridos de morte que jazem na sepultura,
dos quais já não te lembras;
são desamparados de tuas mãos.
Puseste-me na mais profunda cova,
nos lugares tenebrosos.
Sobre mim pesa a tua ira;
tu me abates com todas as tuas ondas”
(Sl 88.3-7).

A metáfora se transforma em nosso professor de oração. Nossas orações do fundo de nossos corações começam a soar assim:

“Não me arraste a correntes das águas,
nem me trague a voragem,
nem se feche sobre mim a boca do poço” (Sl 69.15).

Até os títulos dos sermões de Charles começam a utilizar metáforas que a Escritura oferece aos aflitos: títulos como “A Folha Frágil (Jó 13.25), “O Espírito Abatido” (Pv 18.14), “A Alma Abatida (Sl 42.6) e “A Cana Quebrada (Is 42.1-3). Jesus é “o homem de dores” (Is 53.3). Ele não nos abandona no meio da agonia de um “espinho na carne” (2Co 12.7).

 

A METÁFORA AJUDA A LIDAR COM O MISTÉRIO

Que implicações tem para nós a maneira de Deus usar as metáforas? Você e eu precisamos de uma linguagem para as aflições e Deus a ensina para nós. E por que precisamos desse aprendizado?

O poeta Wendell Berry uma vez descreveu sua intenção de escrever poemas rurais com a linguagem adequada para o local. Seu objetivo era que se alguém fosse ler seus poemas e então visitasse o lugar de onde o poema se originou, a linguagem do poema se provaria nativa do lugar em vez de estrangeira a ele.

Da mesma forma, quando olhamos para a linguagem de Deus revelada na Bíblia, encontramos uma linguagem que o sofredor reconheceria como nativa e não estrangeira em relação à geografia de sua angústia interior. Começamos a falar gradualmente e nos abstemos de falar com aqueles que conhecem esse terreno de angústia em primeira mão. Quando essa fala acontece, a esperança realista tem uma chance.

A metáfora se torna nativa no terreno da depressão, pois:

(1) A metáfora abre espaço. Ela não se propõe a cobrir todos os ângulos, entender cada possibilidade ou explicar cada detalhe. Ela não requer apenas uma explicação possível. A linguagem que se propõe a fazer isso em relação à depressão expõe visivelmente sua ignorância para com a presente situação.

(2) A metáfora permite nuances e diferenciações. Desde que a experiência de cada pessoa com a depressão difere, a metáfora permite a expressão diversa. A prosa estereotipada ou o lugar-comum imediatamente revelam sua falta de realismo em relação a como a depressão prejudica alguém.

(3) A metáfora requer uma maior reflexão e exploração. É uma palavra de convite mais do que de destino que, como observamos anteriormente, é crucial para recolher os escombros da depressão.

Sem a metáfora, a depressão frequentemente expõe a inexperiência do nosso vocabulário. Ela desnuda nossa preferência pelas palavras felizes, prosaicas ou clínicas assumidas por nossa impaciência, nosso treino teológico ou nossas preferências médicas. Ela expõe de forma patente o nosso preconceito contra o lamento, recorrente em nosso falar teológico e em nossas tentativas fracassadas de bem-querer.

A esperança realista, ao contrário, conta com o uso das metáforas. Com isso, criamos uma poesia das aflições, um dicionário das tristezas. A esperança realista nos ensina a capacidade de entrar na “tristeza da multidão”, nas “trevas que se adensam”, “no humor venenoso”, “na imensa tempestade no cérebro”, “na ruína interior”, que frequentam muitos de nossos semelhantes. Nossa linguagem para as trevas cresce de maneira útil.

Sem isso, oferecemos meros band-aids  para ossos quebrados e loção tópica para uma hemorragia interna. Descrevemos em tons pastéis a chocante respiração cinza de uma ofegante ansiedade. E, então, quando os espinheiros e as ervas daninhas assumem o comando, todas as nossas palavras infladas estouram como balões.

Nesse ponto, Kathleen Norris nos assusta apresentando uma ironia penetrante. Ela lamenta que, se queremos encontrar palavras para criar caminhos adequados sobre os quais andar, “você está em melhor companhia com os poetas do que com os cristãos”. “É irônico”, diz ela, “porque as Escrituras do cânon cristão estão cheias de metáforas incomuns que criam a sua própria realidade”.

Às vezes alguns de nós que sofrem de depressão sentem a picada dessa ironia – a incapacidade de encontrar compaixão e conforto das pessoas que leem a Bíblia todos os dias, mas não reconhecem o dom da metáfora para os aflitos dentro de suas páginas. Como podemos diminuir a picada de uma esperança irrealista?

1. Na condição de um doente, procure metáforas para descrever sua experiência. Receba as metáforas que sofridos companheiros têm falado como os dons sussurrados por bons amigos. Acolha o jeito gracioso de Deus de preencher as Escrituras com uma poesia para o aflito como sua capacidade de se sentar, com conhecimento e empatia, nas cinzas com você.

2. Na condição de um auxiliador, aprenda a paciência e a apreciação da metáfora. Você já admitiu que nenhuma resposta ou solução simples está à disposição e que sua fala prolixa de explicação ou exortação não pode remediar a situação. Contudo, isso não significa que as palavras não têm nenhuma utilidade para você. Palavras, de um determinado tipo, lhe são muito úteis. A metáfora nos convida a dizer “o que significa isso?”. Fazer essa pergunta, e em seguida ouvir e aprender, é usar as palavras como convites e pontes em direção à empatia e ao entendimento compartilhado.

 

POESIA DE DEUS PARA AS NOSSAS AFLIÇÕES

Com essa história da metáfora e as narrativas registradas nas Escrituras, a alma frustrada, o cérebro afetado e o demônio assustado recebem uma visão mais ampla e uma linguagem adequada.

Neste ponto voltamos à pergunta que temos feito. Como podemos encontrar uma visão mais ampla sobre Deus para as nossas aflições, sem sermos cruéis ou banais sobre isso? Para Charles, isso se dava, em parte porque a linguagem de Deus revela um Ser que realmente entende nosso dilema.

Se Charles estiver certo e Deus for verdadeiramente gracioso para dar a nossas aflições uma linguagem, então uma esperança realista começa a deslizar suave, mas verdadeiramente, para dentro de nosso campo visual, como ondas na maré rolando sob nossos céus noturnos. Essa esperança pulsa e esmaece, como a lâmpada de um farol circulando vagarosa e perdemos de vista. Novamente e novamente, ela retorna à vista, desbravando seu caminho em nossa direção através da névoa da ausência. As águas da noite começam a brilhar com promessas.

Mas para a terra que estava aflita não continuará
a obscuridade (...)
O povo que andava em trevas
viu grande luz,
e aos que viviam na região da sombra da morte,
resplandeceu-lhes a luz (Is 9.1-2).

A visão mais ampla de Deus existe e possui dentro dela uma linguagem de aflições, para que aos entristecidos, aos angustiados, aos que estão no caminho das trevas e aos habitantes da noite profunda seja dada voz. Essa visão de Deus não é nem cruel e nem banal. Essa visão começa a revelar, de fato, a compaixão divina.

Às vezes, tal compaixão transcende as palavras, tornando-se em gemidos e dores. Admitir os limites das palavras e deixar o silêncio assentar-se enquanto nutrimos uns aos outros ou caminhamos uns com os outros pode ser o reconhecimento gracioso da esmagadora natureza da aflição.

A compaixão divina é seu professor, querido cuidador, seu aliado e amigo, querido sofredor. Deixe a divina linguagem dos aflitos ajudá-lo.

– Zack Eswine / A Depressão de Spurgeon: Esperança realista em meio à angústia – PARTE 2 – Cap. 6 – Pág. 93-102

SUMÁRIO DA SÉRIE "A DEPRESSÃO DE SPURGEON: Esperança Realista em meio à Angústia"

Nenhum comentário:

Postar um comentário

QUEM É O JP PADILHA? QUAL É A SUA PROFISSÃO?

Se você me perguntar o que eu sou, eu lhe responderei: "sou esposo". Se você insistir, lhe responderei: "sou pai"....