CAPÍTULO 2: A Depressão e Nossas Circunstâncias

CAPÍTULO 2

A DEPRESSÃO E NOSSAS CIRCUNSTÂNCIAS

A mente pode desabar muito mais profundamente do que o corpo, pois nela há poços sem fundo. A carne pode suportar apenas um certo número de feridas e não mais, mas a alma pode sangrar de dez mil maneiras, e morrer repetidas vezes a cada hora.[10]

O guarda-chuva era cinza como as nuvens. Eu o segurei sobre eles enquanto se ajoelhavam na lama coberta com lona verde. Lá se ajoelharam debaixo da chuva, ao lado da cova. Lá se ajoelharam com a Bíblia aberta, lendo “eu sou a ressureição e a vida”. As páginas estavam manchadas pelos grandes pingos d’água, não tanto pela chuva, mas por suas lágrimas.

Choravam também em alta voz. Gritavam. Às vezes eram orações o que bradavam enquanto eu segurava o guarda-chuva e a multidão permanecia acinzentada e imóvel. Outras vezes era como se um choro profundo explodisse para apanhar as sílabas e mutilá-las, ao mesmo tempo em que ela balançava seu corpo para frente e para trás, enquanto ele permanecia de joelhos, parado, mas não quieto. Não conseguíamos decifrar suas frases. Mas não precisávamos. O significado estava claro. Um caixão tão pequeno para uma criança tão jovem não era algo que deveria acontecer.

Coisas na vida podem nos machucar, circunstâncias que não desejaríamos para ninguém nos fazem dizer, junto com o apóstolo Paulo, “nenhum alívio tivemos; pelo contrário, em tudo fomos atribulados: lutas por fora, temores por dentro.” (2Co 7.5). Dentro de uma comunidade de circunstâncias gritantes, os sobreviventes uivam com racionalidade:

Ouviu-se um clamor em Ramá,
pranto, choro e grande lamento;
era Raquel chorando por seus filhos
e inconsolável porque não mais existem. (Mt 2.18)


Até mesmo a beleza de um milagre como o nascimento de uma criança pode originar palavras que não conseguem sair da cama, palavras como “pósparto”. “Quem há em nossa espécie humana que seja totalmente livre de aflições?” Charles nos pergunta. “Vasculhem por toda a terra, e em todo lugar, o espinheiro e a erva daninha serão encontrados”.[11]

“Há tempo de prantear” (Ec 3.4), não importa quem sejamos.

O PAPEL DAS CIRCUNSTÂNCIAS DOLOROSAS
Uma circunstância já partiu seu coração? “Há várias formas de um coração partido”[12], Charles nos lembra afetuosamente.

Deserção: negligência ou traição por parte de um cônjuge, membro da família ou amigo.
Perda ou privação: doença ou morte de alguém que amamos.
Penúria: perda de emprego, tensão financeira, pobreza em relação às necessidades básicas.
Desapontamento e Derrota: sonhos frustrados, objetivos bloqueados, tentativas fracassadas, inimigos vitoriosos.
Culpa: remorsos, sofrimentos que causamos aos outros, pecados contra Deus.

Tantas outras circunstâncias além dessas podem nos traumatizar, aqui debaixo deste sol, neste mundo assolado por crimes e tsunamis. Os sábios da antiguidade nos ensinam que se entristecer com coisas tristes é sensato:

Melhor é ir à casa onde há luto
do que ir à casa onde há banquete,
pois naquela se vê o fim de todos os homens;
e os vivos que o tomem em consideração. (Ec 7.2)


Então, vamos lembrar a nós mesmos desde o início: por si só, a tristeza ou a dor “é um dom de Deus para nós. É como sobrevivemos.”[13]. É um ato de fé e sabedoria ficar triste com coisas tristes.

DEPRESSÃO COMO SINTOMA DE
CIRCUNSTÂNCIAS DOLOROSAS
Às vezes a tristeza em resposta a uma circunstância dolorosa pode tomar um rumo sombrio. Ela se transforma em algo diferente de si mesma. O luto não termina e a criatura sombria a que chamamos depressão desperta de sua toca.

“Há certas formas de doença”, observa Charles, “que afetam o cérebro e todo o sistema nervoso de tal forma que a depressão torna-se um sintoma melancólico da doença.”[14].

De forma bastante involuntária, a infelicidade da mente, a depressão do espírito e a aflição do coração virão sobre você. Você pode não ter nenhuma razão real para a tristeza e ainda pode vir a tornar-se um dentre os homens mais infelizes, porque, por ora, seu corpo subjuga a sua alma.[15]

Note que Charles fala da depressão como se nossas escolhas fossem anuladas. A depressão nos vem “involuntariamente”, como se a coisa tivesse vontade própria. Perceba também que não existe uma razão identificável para o tamanho dessa angústia. Exibimos a infelicidade da mente, não importa se as circunstâncias de nossa vida são boas ou más.

Tristezas multiplicadas também podem tomar um rumo sombrio em direção à depressão. “Provações atrás de provações” acabaram com todas as nossas esperanças.[16] As provas se tornam como ondas no mar que rolam sobre nós uma após a outra. Tal “acúmulo de dores, tormentas, fraquezas e aflições” pode causar sérios danos em nós.[17] Nosso barco começa a naufragar.

Ansiosos, enquanto as ondas nos sobrevêm, tampamos um buraco aqui outro acolá. A tempestade vai tomando forma. Nosso barco sobe e desce. Logo surgem mais buracos do que temos energia para tampar. As águas se quebram sobre nós. Esforçamo-nos o máximo que pudemos. A última onda passou do ponto. Nosso barco afundou. Nesse caso, essa depressão é mesmo “uma agonia fora de proporção”? Ou em meio a todo esse sofrimento a depressão em si já é a própria agonia?

Afinal de contas, para alguns de nós, fomos incapazes de viver qualquer outra cena se não aquela que nos massacrou. Fomos tragados tão profundamente que jamais conseguimos levantar a cabeça novamente. É como se, daquele tempo em diante, tivéssemos de prosseguir lamentando até nossas sepulturas.[18] As circunstâncias nos assombraram e prosseguiram fazendo-o. A depressão chegou e nunca partiu. Ela ainda nos assombra.

Talvez, em meio às nossas mais dolorosas circunstâncias, estão aquelas sofridas na infância. A depressão conquistou seu momento em nossa juventude e algo central em nosso temperamento é alterado permanentemente. Tornamo-nos como uma planta sensível, cujas gavinhas se enrolam ao toque. Desde então, nossas vidas exibem um constante encolhimento ao contato com outras pessoas. Não mais ousamos encarar o mundo19. Presumimos que o mundo nos persegue, sempre a fim de nos prejudicar.

Como então distinguir a diferença entre o dom da tristeza e o trauma da depressão circunstancial? Em seu aclamado livro, O Demônio do Meio-Dia; Uma Anatomia da Depressão, Andrew Solomon responde: “O pesar é a depressão proporcional à circunstância” enquanto “a depressão é um pesar desproporcional à circunstância.”[20].

Vamos fazer uma pausa por um instante e admitir quão feio pode ser o sofrimento ordinário em proporção à circunstância. Por exemplo, qual a proporção de sofrimento que faz sentido para o sobrevivente de um genocídio? E a respeito de uma mãe cujo filho foi assassinado, ou o pai cuja filha perdeu uma longa luta contra o câncer e morreu jovem? Como definimos o que é saudável e proporcional não pode ser mensurado por nossa própria impaciência pessoal ou decoro cultural. A cruel situação, por si própria, deve revelar a merecida proporção de sofrimento.

SEM CURA PARA A TRISTEZA
Nessa perspectiva, contrária ao que algumas pessoas nos dizem, a tristeza não é um sinal de indolência ou pecado, nem de pensamento negativo ou fraqueza. Pelo contrário, quando nos encontramos impacientes com a tristeza, revelamos nossa preferência pela insensatez, nossa resistência à sabedoria e nosso descaso por profundidade e proporção.

Então, quando vemos pessoas que estão sofrendo, e queremos impedi-las disso, não devemos subestimar o que elas tiveram de superar em suas vidas. A depressão exige ainda mais compaixão e aceitação. Elas pecam sim. Porém todos nós já fomos alvos de pecado também. Se conhecêssemos as provações que as atacaram, talvez descobriríamos também uma vida em que tristezas medonhas e olhares miseráveis visitam mais nossa memória do que queremos.

A memória é, afinal, uma coisa muito poderosa. Ela pode tanto nos abençoar quanto assombrar. Alguns de nós são assombrados em suas memórias. Circunstâncias deixaram suas cicatrizes. Tais pessoas precisam de misericórdia e não de olhares reprovadores. Afinal, no lado de cá do paraíso, “Não há cura para a tristeza”[21] ou para a inevitável realidade da depressão. Nenhum santo ou herói está imune. O espaço para chorar alto ou por muito tempo continua sendo fortemente necessário, merecido e nobremente humano.

Então, enquanto nos dirigimos ao nosso próximo capítulo, vamos segurar juntos o guarda-chuva ensopado, próximo à beira do túmulo, e estabelecer esta importante verdade: neste mundo caído, a tristeza é um ato de sanidade e nossas lágrimas, o testemunho daquilo que é são.

O QUE NOS ENSINA A DEPRESSÃO
ORIGINÁRIA DAS CIRCUNSTÂNCIAS
1. A fé cristã na terra não é nem escapismo nem paraíso. Charles fala sobre certos cristãos que, por sua posição de saúde e riqueza, sugerem que a perfeição, facilidade e imunidade às tribulações humanas descrevem o que a fidelidade a Jesus produz. Charles contradiz essa noção e descreve, ao invés disso, “o povo provado de Deus” que “não com frequência cavalga esses cavalos altos.” O número expressivo de suas ansiedades e preocupações os forçam a uma vida na qual devem frequentemente clamar a Deus e que expõe sua condição humana de simples mortais.[22]

2. Não equiparamos bênçãos espirituais com comodidade circunstancial. “Estou certo de que meus irmãos estão frequentemente em tribulações. A vida inteira deles é rastejar-se para sair de um pântano de desânimo e afundar em outro. Você teve muitas perdas nos negócios — nada mais além de perdas talvez; você teve muitas cruzes, privações, lutos, nada prospera com você (...) isso não é sinal, amado, de que você não é um filho de Deus (...) lembre-se que nenhuma de suas provações pode provar que você é um homem perdido.”[23]

3. Nós que não sofremos depressão circunstancial devemos aprender o cuidado pastoral para com aqueles que a sofrem. Quando uma pessoa “passou por uma experiência similar” de depressão, “ela usa outro tom de voz totalmente diferente. Ela sabe que, mesmo que seja algo sem sentido para os fortes, assim não o é para os fracos, e ela então adapta seus comentários de modo que anime” o sofredor “onde outros só infligem dor adicional. A você que tem o coração quebrantado, Jesus conhece todas as suas aflições, pois aflições semelhantes foram a sua porção” também.[24]


–– Zack Eswine / A Depressão de Spurgeon: Esperança realista em meio à angústia – PARTE 1 – Cap. 2 – Pág. 37-45

SUMÁRIO DA SÉRIE "A DEPRESSÃO DE SPURGEON: Esperança Realista em meio à Angústia"
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NOTAS:
10. Spurgeon, Honey in the Mouth, MTP, Vol. 37, Sermão 2213, p. 485.
11. Charles Spurgeon, The Man of Sorrows, MTP, Vol. 19, Sermão 1099 (Ages Digital Library, 1998),
p.155.
12. Charles Spurgeon, Healing for the Wounded, NPSP, Vol. 1, Sermão 53
(http://www.spurgeon.org/sermons/0053.htm), acessado em 13/12/13.
13. Rick Warren citado por Jaweed Kaleem, Rick and Kay Warren Launch Mental Health Ministry at
Saddleback Church After Sons Suicide, (March 31, 2014: Huffington Post):
(http://www.huffingtonpost.com/2014/03/28/rick-warren-mental-health_n_5051129.html), acessado em
31/03/14.
14. Charles Spurgeon, The Fear of Death, MTP, Vol. 58, Sermão 3286 (Ages Digital Library, 198), p.
52.
15. Charles Spurgeon, The Saddest Cry from the Cross, MTP, Vol. 48, Sermão 2803 (Ages Digital
Library, 1998), p. 656.
16. Charles Spurgeon, Sweet Stimulants for the Fainting Soul, MTP, Vol. 48, Sermão 2798 (Ages Digital
Library, 1998), p. 575.
17. Charles Spurgeon, Faintness and Refreshing, MTP, Vol. 54, Sermão 3110 (Ages Digital Library,
1998), p. 591.
18. Charles Spurgeon, Weak Hands and Feeble Knees, NPSP, Vol. 5, Sermão 243
(http://www.spurgeon.org/sermons/0243.htm), acessado em 6/3/14.
19. ibid.
20. Andrew Solomon, O Demônio do Meio-dia: uma anatomia da depressão (São Paulo: Companhia
das Letras, 2014), p. 16.
21. Susanna Kaysen, One Cheer for Melancholy, em Unholy Ghost: Writers on Depression (New
York: Perennial, 2002), p. 41.
22. Charles Spurgeon, Night and Jesus Not There! MTP, Vol. 51, Sermão 2945 (Ages Digital Library,
1998), p. 457.
23. Charles Spurgeon, The Believer Sinking in the Mire, MTP, Vol. 11, Sermão 631 (Ages Digital
Library, 1998), p. 361.
24. Charles Spurgeon, Binding Up Broken Hearts, MTP, Vol. 54, Sermão 3104 (Ages Digital Library,
1998), p. 491.

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