Charles Haddon Spurgeon (1834-1892) foi
um pregador batista britânico que pastoreou o Tabernáculo Metropolitano em
Londres. Havendo exercito um ministério muito influente em grande parte do
mundo, o seu monumental trabalho, inclusive o vastíssimo material escrito,
constitui-se em um legado singular na história do Cristianismo Protestante. Sua
vocação notória para a pregação bíblica, bem como os marcos norteadores de sua
teologia, renderam-lhe os títulos de “O Príncipe dos Pregadores” e “O Último
dos Puritanos”.
Alguém no meio cristão evangélico colocaria em questão a importância do pensamento de Spurgeon? Há alguém que ignore que ele é considerado um “campeão da fé”, do púlpito, do ministério pastoral e da controvérsia evangélico-reformada? O que uma pessoa assim teria a comunicar sobre a depressão? Neste livro, Zack Eswine trabalha principalmente com a sermonística de Spurgeon. Percebe-se que, em rigor, o que o autor pretende é solicitar que o próprio Spurgeon ofereça a sua ajuda pastoral àqueles que sofrem de depressão. Pensar que um homem como Spurgeon lidou com este assunto, tanto na experiência pessoal quanto no púlpito, pode ser de imensa relevância hoje em dia e, talvez, surpreendente para muitos.
Observe-se, inicialmente, que o cuidado pastoral de Spurgeon, alinhado em seus principais referenciais teóricos com a tradição puritana (conquanto em alguns aspectos também se posicionasse criticamente em relação a ela), era pautado pelas Escrituras Sagradas, buscando nestas a luz para lidar com os problemas de seu rebanho. Como ele mesmo disse: “Creio em uma inspiração plenária e humildemente olho para o Senhor em busca de um cumprimento plenário de cada frase que Ele fez registrar”.
Um segundo aspecto a ser observado no cuidado pastoral de Spurgeon é o seu meticuloso esforço por encontrar o ensino das Escrituras Sagradas acerca do “coração” e “alma” humanos. Isto é, ele esforçou-se para alcançar uma compreensão bíblica daquilo que se convenciona chamar de “vida interior” do homem, e da relação que esta possui com o comportamento exterior. Depois de Cristo, há de se duvidar que algum personagem bíblico tenha conhecido tão bem a alma humana quanto Davi; também é de se duvidar que alguém tenha conhecido tão bem o coração de Davi quanto Spurgeon. A opus magna de Spurgeon é O Tesouro de Davi, cujos volumes contêm uma profunda investigação dos Salmos e nos oferecem uma igualmente profunda percepção da alma humana.
A convicção de Spurgeon era que a revelação divina que está na Bíblia não oferece apenas a verdade fidedigna e mais elevada acerca de Deus, mas também da verdadeira e mais profunda natureza humana. Desta forma, somente à luz das Escrituras o ser humano é capaz de perceber desde o começo a realidade sobre o próprio coração, em vez de ficar tateando sem rumo no escuro, ou, por fim, acabar em um beco sem saída. Em seu cuidado pastoral, Spurgeon procurava chegar perto do coração de sua ovelha. É no coração que o ser humano se encontra posicionado, para bem ou para mal, em relação a Deus ou aos ídolos. Foi para tal profundidade interior que ele procurou dirigir o seu cuidado pastoral.
Um terceiro aspecto é que Spurgeon, submetido à luz da Escritura Sagrada, e tal como aprendia dos sábios dos tempos bíblicos, notavelmente no Antigo Testamento, também não se esquivou de observar a pessoa humana neste mundo “debaixo do sol”, criado por Deus e regulado por leis que Ele mesmo estabeleceu. Protótipos dos conselheiros encontrados no registro bíblico, os sábios, orientados pelo princípio do “temor do Senhor”, observavam com discernimento e judiciosamente o mundo criado por Deus, a fim de extrair compreensões acerca da pessoa humana, inclusive em sua própria experiência, confrontando-as com a palavra normativa e autoritativa do Senhor. O sábio do Antigo Testamento é alguém distinguido por uma sabedoria que lhe dá discernimento, critério e medida justamente por observar e refletir na Escritura e na criação, no temor e amor a Deus. Deste movimento, derivava um conhecimento que não era apenas descritivo mas também prescritivo, como se pode observar com clareza no livro de Provérbios. O leitor observará a prática de tal princípio aqui neste livro, onde Spurgeon recorre, inclusive, à sua experiência pessoal.
Assim, afirmados os indubitáveis compromissos de Spurgeon com a Bíblia, é necessário lembrar que nem tudo o que podemos saber sobre o homem está registrado na Bíblia. A Bíblia não nos dá uma resposta concreta e específica a toda e qualquer pergunta. Nesse sentido, Spurgeon, alinhado à tradição reformado-puritana, encontrava o seu ponto de partida na Bíblia, e usava a luz esplêndida que a Bíblia lança sobre toda a criação a fim de adquirir mais conhecimento sobre o homem por meio da observação, e para interagir criticamente com áreas mais específicas de pesquisa e experimentação. Ele esforçava-se por responder, ao espírito e à luz da Bíblia, as questões não tratadas diretamente pela Bíblia. Sua intenção era, entretanto, ser fiel à Bíblia, a saber, fiel à forma ou ensino pelo qual a Bíblia em geral se expressa, embora procurasse derivar dela o seu conhecimento mais essencial e profundo acerca do ser humano. Devotado à pregação, ao ensino e à aplicação bíblica, a abordagem de Spurgeon era, definidamente, aquela denominada de Sola Scriptura (“somente a Bíblia”), não postulando, portanto, a abordagem geralmente conhecida como Nuda Scriptura (“a Bíblia sozinha”).
Dessa maneira, em quarto lugar, o leitor poderá observar neste livro que Spurgeon não estabelecia uma abordagem aprioristicamente antitética entre o seu cuidado pastoral e os estudos ou conclusões das ciências, e particularmente no assunto aqui abordado, da medicina e de pesquisas psicológicas de seus dias. Nisso, mais uma vez, ele se encontrava alinhado com a fé reformada, notadamente a puritana, a qual valorizou grandemente a experimentação empírica. Através da história do cristianismo, a ciência tem sido vista, fundamentalmente, como um dom de Deus, embora cristãos amadurecidos não a tiveram simploriamente como infalível ou neutra por definição em relação a Deus – o que pode ser particularmente observado a partir de meados do século dezenove. Assim, cristãos têm preferido uma abordagem positivamente crítica em relação à ciência, e no caso de Spurgeon, o que se vislumbra é o manejo das Escrituras Sagradas como a “vara de medir”.
O que temos dito já nos permite situar, assim, a abordagem de Spurgeon para a depressão. Representante da clássica poimênica puritana, Spurgeon alinhava-se à tradição de muitos pregadores e escritores em seu entendimento sobre as depressões e senso de “deserção espiritual”, os quais utilizavam-se das experiências de Jó (13, 16, 19, 31), Asafe (Sl 77) e Hemã (Sl 88), bem como outros exemplos escriturísticos, a fim de exemplificá-las. De um modo geral, essa tradição sustentava três contextos ou categorias para as depressões. O leitor deve atentar para o fato de que Eswine propõe igualmente uma tríplice categorização na primeira unidade deste livro, e isso deve ser tomado em contexto especialmente na leitura do capítulo oito, “Jesus e a Depressão”. Assim, por um lado, algo muito importante na abordagem de Spurgeon é que ela não reduz a depressão a uma questão de medicina.
Neste ponto, porém, algo mais deve ser dito. Os conceitos de saúde e doença experimentaram com a medicina grega uma importante inflexão. Hipócrates de Cós (460–377 a.C.), considerado o pai da Medicina, e Galeno de Pérgamo (ca. 129–217) propuseram uma medicina humoral, caracterizada pela valorização da observação empírica. Desde o início, os puritanos valeram-se de contribuições da medicina hipocrático-galênica e recorreram ao conceito de “melancolia”, que era usualmente utilizado por eles para definir a condição de depressão para a qual o sujeito não podia oferecer nenhuma razão coerente, e que resultava de causas naturais (“constitucionais”), em distinção das causas definidamente espirituais ou circunstanciais. Nesse contexto militaram, por exemplo, o pastor e “médico leigo” Richard Baxter (1615-1691), Timothy Rogers (1658–1728), em seu volumoso tratado sobre os problemas da mente e a doença da melancolia, Jonathan Edwards (1703-1758) e muitos outros. O cuidado pastoral desses homens expressou a abordagem puritana padrão para a depressão, conquanto também tenha havido alguma variação quanto ao foco ou contexto. Assim, é compreensível que nessa tradição, Richard Baxter tenha recomendado medicamentos em um dos seus sermões sobre o assunto, e Thomas Brooks (1608–1680) tenha escrito em uma nota de rodapé que “a cura da melancolia pertence ao médico em vez do ministro religioso; a Galeno em vez de Paulo”. Pela época de Spurgeon, já estava grandemente superado o conceito humoral de melancolia, que se supunha resultar da prevalência de um fluido que modulava o temperamento. Não obstante, permanecia o entendimento de que ela resultava de causas naturais (“constitucionais”) e de que podia ser detectada por meio de observação empírica, inclusive pelo ministro em seu cuidado pastoral. Neste particular, no século dezenove, Spurgeon não era exatamente um “inovador” nessa abordagem poimênica; ao contrário, era herdeiro e o último grande representante dela, antes do alvorecer do século vinte.
Por fim, é muito significativo que Spurgeon, igualmente alinhado na mesma tradição puritana, haja tratado ampla e regularmente deste tema em sua pregação. Neste tempo em que os mais maduros expositores bíblicos acautelam-se, com razão, de uma sermonística degenerada em discursos de auto-ajuda, é igualmente vital resgatar o entendimento de que os sofrimentos e problemas no cotidiano das pessoas não podem ser negligenciados pelo cuidado pastoral de um modo mais amplo e pelo púlpito em particular.
O livro que o leitor tem em mãos pode contribuir para uma pastoral reformada no contexto do sofrimento. Zack Eswine encontra em Spurgeon grande encorajamento para o problema que também conhece por experiência pessoal. A sua intenção é que “as aflições de Spurgeon” ofereçam “esperança realista para aqueles que sofrem de depressão”. E o autor sublinha que “a esperança realista é algo saturado de Jesus”. O profeta Isaías apresenta Cristo como “homem de dores e que sabe o que é padecer” (Is 53.3), e o escritor da Epístola aos Hebreus enfatiza que “não temos sumo sacerdote que não possa compadecer-se das nossas fraquezas; antes, foi ele tentado em todas as coisas, à nossa semelhança, mas sem pecado” (Hb 4.15); logo, “naquilo que ele mesmo sofreu, tendo sido tentado, é poderoso para socorrer os que são tentados” (Hb 2.18). Neste livro, o leitor encontrará a conclusão de Spurgeon de que a “simpatia” de Cristo com os nossos sofrimentos inclui o sofrimento mental. A pessoa que sofre de depressão pode, então, encontrar em Cristo um bom amigo para a sua aflição, pois Cristo sabe o que é este padecer.
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* Gilson Carlos de Souza Santos possui bacharelado em Teologia, formação em Psicologia, e licenciaturas em História e Geografia. É concluinte de uma especialização em Avaliação Psicológica Clínica, e aluno de especialização em Psicopatologia na Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo, com atuação prática no Centro de Atenção Integral à Saúde Mental (antigo “Hospital Psiquiátrico da Vila Mariana”). Exerce atividades pastorais desde 1987 e docentes desde 1988. Preside desde 1999 o corpo pastoral da Igreja Batista da Graça em São José dos Campos, São Paulo. Integra o conselho administrativo do Seminário Martin Bucer no Brasil, no qual leciona especialmente disciplinas na área pastoral. www.gilsonsantos.com
Alguém no meio cristão evangélico colocaria em questão a importância do pensamento de Spurgeon? Há alguém que ignore que ele é considerado um “campeão da fé”, do púlpito, do ministério pastoral e da controvérsia evangélico-reformada? O que uma pessoa assim teria a comunicar sobre a depressão? Neste livro, Zack Eswine trabalha principalmente com a sermonística de Spurgeon. Percebe-se que, em rigor, o que o autor pretende é solicitar que o próprio Spurgeon ofereça a sua ajuda pastoral àqueles que sofrem de depressão. Pensar que um homem como Spurgeon lidou com este assunto, tanto na experiência pessoal quanto no púlpito, pode ser de imensa relevância hoje em dia e, talvez, surpreendente para muitos.
Observe-se, inicialmente, que o cuidado pastoral de Spurgeon, alinhado em seus principais referenciais teóricos com a tradição puritana (conquanto em alguns aspectos também se posicionasse criticamente em relação a ela), era pautado pelas Escrituras Sagradas, buscando nestas a luz para lidar com os problemas de seu rebanho. Como ele mesmo disse: “Creio em uma inspiração plenária e humildemente olho para o Senhor em busca de um cumprimento plenário de cada frase que Ele fez registrar”.
Um segundo aspecto a ser observado no cuidado pastoral de Spurgeon é o seu meticuloso esforço por encontrar o ensino das Escrituras Sagradas acerca do “coração” e “alma” humanos. Isto é, ele esforçou-se para alcançar uma compreensão bíblica daquilo que se convenciona chamar de “vida interior” do homem, e da relação que esta possui com o comportamento exterior. Depois de Cristo, há de se duvidar que algum personagem bíblico tenha conhecido tão bem a alma humana quanto Davi; também é de se duvidar que alguém tenha conhecido tão bem o coração de Davi quanto Spurgeon. A opus magna de Spurgeon é O Tesouro de Davi, cujos volumes contêm uma profunda investigação dos Salmos e nos oferecem uma igualmente profunda percepção da alma humana.
A convicção de Spurgeon era que a revelação divina que está na Bíblia não oferece apenas a verdade fidedigna e mais elevada acerca de Deus, mas também da verdadeira e mais profunda natureza humana. Desta forma, somente à luz das Escrituras o ser humano é capaz de perceber desde o começo a realidade sobre o próprio coração, em vez de ficar tateando sem rumo no escuro, ou, por fim, acabar em um beco sem saída. Em seu cuidado pastoral, Spurgeon procurava chegar perto do coração de sua ovelha. É no coração que o ser humano se encontra posicionado, para bem ou para mal, em relação a Deus ou aos ídolos. Foi para tal profundidade interior que ele procurou dirigir o seu cuidado pastoral.
Um terceiro aspecto é que Spurgeon, submetido à luz da Escritura Sagrada, e tal como aprendia dos sábios dos tempos bíblicos, notavelmente no Antigo Testamento, também não se esquivou de observar a pessoa humana neste mundo “debaixo do sol”, criado por Deus e regulado por leis que Ele mesmo estabeleceu. Protótipos dos conselheiros encontrados no registro bíblico, os sábios, orientados pelo princípio do “temor do Senhor”, observavam com discernimento e judiciosamente o mundo criado por Deus, a fim de extrair compreensões acerca da pessoa humana, inclusive em sua própria experiência, confrontando-as com a palavra normativa e autoritativa do Senhor. O sábio do Antigo Testamento é alguém distinguido por uma sabedoria que lhe dá discernimento, critério e medida justamente por observar e refletir na Escritura e na criação, no temor e amor a Deus. Deste movimento, derivava um conhecimento que não era apenas descritivo mas também prescritivo, como se pode observar com clareza no livro de Provérbios. O leitor observará a prática de tal princípio aqui neste livro, onde Spurgeon recorre, inclusive, à sua experiência pessoal.
Assim, afirmados os indubitáveis compromissos de Spurgeon com a Bíblia, é necessário lembrar que nem tudo o que podemos saber sobre o homem está registrado na Bíblia. A Bíblia não nos dá uma resposta concreta e específica a toda e qualquer pergunta. Nesse sentido, Spurgeon, alinhado à tradição reformado-puritana, encontrava o seu ponto de partida na Bíblia, e usava a luz esplêndida que a Bíblia lança sobre toda a criação a fim de adquirir mais conhecimento sobre o homem por meio da observação, e para interagir criticamente com áreas mais específicas de pesquisa e experimentação. Ele esforçava-se por responder, ao espírito e à luz da Bíblia, as questões não tratadas diretamente pela Bíblia. Sua intenção era, entretanto, ser fiel à Bíblia, a saber, fiel à forma ou ensino pelo qual a Bíblia em geral se expressa, embora procurasse derivar dela o seu conhecimento mais essencial e profundo acerca do ser humano. Devotado à pregação, ao ensino e à aplicação bíblica, a abordagem de Spurgeon era, definidamente, aquela denominada de Sola Scriptura (“somente a Bíblia”), não postulando, portanto, a abordagem geralmente conhecida como Nuda Scriptura (“a Bíblia sozinha”).
Dessa maneira, em quarto lugar, o leitor poderá observar neste livro que Spurgeon não estabelecia uma abordagem aprioristicamente antitética entre o seu cuidado pastoral e os estudos ou conclusões das ciências, e particularmente no assunto aqui abordado, da medicina e de pesquisas psicológicas de seus dias. Nisso, mais uma vez, ele se encontrava alinhado com a fé reformada, notadamente a puritana, a qual valorizou grandemente a experimentação empírica. Através da história do cristianismo, a ciência tem sido vista, fundamentalmente, como um dom de Deus, embora cristãos amadurecidos não a tiveram simploriamente como infalível ou neutra por definição em relação a Deus – o que pode ser particularmente observado a partir de meados do século dezenove. Assim, cristãos têm preferido uma abordagem positivamente crítica em relação à ciência, e no caso de Spurgeon, o que se vislumbra é o manejo das Escrituras Sagradas como a “vara de medir”.
O que temos dito já nos permite situar, assim, a abordagem de Spurgeon para a depressão. Representante da clássica poimênica puritana, Spurgeon alinhava-se à tradição de muitos pregadores e escritores em seu entendimento sobre as depressões e senso de “deserção espiritual”, os quais utilizavam-se das experiências de Jó (13, 16, 19, 31), Asafe (Sl 77) e Hemã (Sl 88), bem como outros exemplos escriturísticos, a fim de exemplificá-las. De um modo geral, essa tradição sustentava três contextos ou categorias para as depressões. O leitor deve atentar para o fato de que Eswine propõe igualmente uma tríplice categorização na primeira unidade deste livro, e isso deve ser tomado em contexto especialmente na leitura do capítulo oito, “Jesus e a Depressão”. Assim, por um lado, algo muito importante na abordagem de Spurgeon é que ela não reduz a depressão a uma questão de medicina.
Neste ponto, porém, algo mais deve ser dito. Os conceitos de saúde e doença experimentaram com a medicina grega uma importante inflexão. Hipócrates de Cós (460–377 a.C.), considerado o pai da Medicina, e Galeno de Pérgamo (ca. 129–217) propuseram uma medicina humoral, caracterizada pela valorização da observação empírica. Desde o início, os puritanos valeram-se de contribuições da medicina hipocrático-galênica e recorreram ao conceito de “melancolia”, que era usualmente utilizado por eles para definir a condição de depressão para a qual o sujeito não podia oferecer nenhuma razão coerente, e que resultava de causas naturais (“constitucionais”), em distinção das causas definidamente espirituais ou circunstanciais. Nesse contexto militaram, por exemplo, o pastor e “médico leigo” Richard Baxter (1615-1691), Timothy Rogers (1658–1728), em seu volumoso tratado sobre os problemas da mente e a doença da melancolia, Jonathan Edwards (1703-1758) e muitos outros. O cuidado pastoral desses homens expressou a abordagem puritana padrão para a depressão, conquanto também tenha havido alguma variação quanto ao foco ou contexto. Assim, é compreensível que nessa tradição, Richard Baxter tenha recomendado medicamentos em um dos seus sermões sobre o assunto, e Thomas Brooks (1608–1680) tenha escrito em uma nota de rodapé que “a cura da melancolia pertence ao médico em vez do ministro religioso; a Galeno em vez de Paulo”. Pela época de Spurgeon, já estava grandemente superado o conceito humoral de melancolia, que se supunha resultar da prevalência de um fluido que modulava o temperamento. Não obstante, permanecia o entendimento de que ela resultava de causas naturais (“constitucionais”) e de que podia ser detectada por meio de observação empírica, inclusive pelo ministro em seu cuidado pastoral. Neste particular, no século dezenove, Spurgeon não era exatamente um “inovador” nessa abordagem poimênica; ao contrário, era herdeiro e o último grande representante dela, antes do alvorecer do século vinte.
Por fim, é muito significativo que Spurgeon, igualmente alinhado na mesma tradição puritana, haja tratado ampla e regularmente deste tema em sua pregação. Neste tempo em que os mais maduros expositores bíblicos acautelam-se, com razão, de uma sermonística degenerada em discursos de auto-ajuda, é igualmente vital resgatar o entendimento de que os sofrimentos e problemas no cotidiano das pessoas não podem ser negligenciados pelo cuidado pastoral de um modo mais amplo e pelo púlpito em particular.
O livro que o leitor tem em mãos pode contribuir para uma pastoral reformada no contexto do sofrimento. Zack Eswine encontra em Spurgeon grande encorajamento para o problema que também conhece por experiência pessoal. A sua intenção é que “as aflições de Spurgeon” ofereçam “esperança realista para aqueles que sofrem de depressão”. E o autor sublinha que “a esperança realista é algo saturado de Jesus”. O profeta Isaías apresenta Cristo como “homem de dores e que sabe o que é padecer” (Is 53.3), e o escritor da Epístola aos Hebreus enfatiza que “não temos sumo sacerdote que não possa compadecer-se das nossas fraquezas; antes, foi ele tentado em todas as coisas, à nossa semelhança, mas sem pecado” (Hb 4.15); logo, “naquilo que ele mesmo sofreu, tendo sido tentado, é poderoso para socorrer os que são tentados” (Hb 2.18). Neste livro, o leitor encontrará a conclusão de Spurgeon de que a “simpatia” de Cristo com os nossos sofrimentos inclui o sofrimento mental. A pessoa que sofre de depressão pode, então, encontrar em Cristo um bom amigo para a sua aflição, pois Cristo sabe o que é este padecer.
_________________________________________________________
* Gilson Carlos de Souza Santos possui bacharelado em Teologia, formação em Psicologia, e licenciaturas em História e Geografia. É concluinte de uma especialização em Avaliação Psicológica Clínica, e aluno de especialização em Psicopatologia na Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo, com atuação prática no Centro de Atenção Integral à Saúde Mental (antigo “Hospital Psiquiátrico da Vila Mariana”). Exerce atividades pastorais desde 1987 e docentes desde 1988. Preside desde 1999 o corpo pastoral da Igreja Batista da Graça em São José dos Campos, São Paulo. Integra o conselho administrativo do Seminário Martin Bucer no Brasil, no qual leciona especialmente disciplinas na área pastoral. www.gilsonsantos.com
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